Diga-me
futuro psicoterapeuta: como está o seu corpo hoje? Já parou para senti-lo ou,
quem sabe, apenas indagá-lo? Como você acordou hoje? O que comeu? O que sentiu
ao longo do dia? Por que escolheu a roupa que está vestindo? Por que está
sentando assim e justamente nesse lugar? Que experiência o teu corpo teve hoje?
Ou ainda, que comportamentos ele teve que reproduzir e por que teve que ser
assim?
A
prática clínica exige um corpo-a-corpo, a “co-criação de um dança intensiva”. Entende-se que ser psicólogo é compartilhar, acolher e
manejar processos de subjetivação e que isso exige uma operatória no corpo e
pelo corpo. Corpo esse, que deve ser “corajoso e lúdico para incorporação de
novos ritmos, necessários a elaboração dos processos criativos do viver e dos
seus respectivos modos de pensar-sentir-fazer”. Corpo esse que deve escutar de
forma sensível a história do seu paciente, abrindo e criando espaço para a
narração e, assim, para uma possível dança dos sentidos, das palavras. Dessa
forma, talvez pudéssemos pensar no lugar da contratransferência, o corpo; no
lugar, do diagnóstico, a história; no lugar da interpretação, a narração.
Mas o que implica pensar um corpo que escuta? Não seria a mente a
parte apta a escutar? Pelo menos parece ser ela a parte mais investida numa
formação em psicologia ou, ainda, em qualquer processo de ensino-aprendizagem.
A educação, como um todo passou a valorizar a mente em prol do corpo, assim
falar se tornou mais importante do que viver, do que sentir. Ganhamos um
pensamento obeso e, em contrapartida, um corpo raquítico que muitas vezes
carece até mesmo de um lugar de repouso. Corpo esse que a sociedade ainda
insiste em reduzir à imagem, servindo como suporte às idealizações e às tantas
formas de poder que estamos assujeitados.
Mas onde fica o corpo? Em que lugar histórico, teórico e prático
ele ficou? Por onde é que andarás o corpo-terapeuta dentro do setting? No nosso
cotidiano o corpo parece evidenciar nosso humor, nossos gostos, desejos, nossa
singularidade, deixando escapar muitas vezes nossas marcas, cicatrizes, nos
despindo frente ao olhar do outro. Frases como: “você não está bem hoje né?”,
“humm, alguma coisa deve ter acontecido pra ti estar iluminada desse jeito”.
Como assim? A pessoa não fala nada e os outros conseguem adivinhar suas
emoções? Seu estado de espírito? É...o corpo fala, ele produz sentidos
constantemente, porém de forma sempre original, a partir das suas histórias,
dos seus encontros, das suas relações, do momento e do espaço onde está, o que
nos leva a desconfiar e desacreditar, definitivamente, em manuais que buscam
delimitar e significar suas ações. Não há como prever o corpo, há apenas como
produzir afetações diante dele. É justamente por afetar e ser afetado que o
corpo é sempre outro, ainda sendo o mesmo. É justamente por existir na/pela
relação que um corpo só é corpo quando em contato com outro corpo, produzindo
imagens de si a partir da maneira como é afetado pelos demais corpos e, também,
da maneira como os afeta. Além disso, se faz importante dizer: o que se passa
num corpo, simultaneamente se passa na mente. O que aumenta a potência de agir
do corpo também aumenta a potência de agir da mente. Mente e corpo trabalham
juntos. Contudo, insisto em perguntar: como fica isso na prática clínica? Qual
a história do corpo nesse espaço-tempo?
Talvez pudéssemos dizer que a história do corpo dentro da prática
clínica é da ordem do medo, da insegurança necessitando assim da neutralidade.
Várias foram as recomendações feitas aos iniciantes: não julgar, não direcionar
o discurso do paciente, não trazer e nem responder questões pessoais dentro do
setting...ser neutro, uma espécie de tela em branco, somente refletir naquele
espaço o que o paciente trouxer, nada mais, nada menos. Assim, o
corpo-terapeuta inicia seu percurso parecendo carregar na sua própria imagem um
risco constante à busca de cura pelo paciente. O terapeuta veste seu corpo da
teoria e da técnica para, dessa forma, esconder a sua pele, aquilo que
evidencia a sua singularidade, as suas marcas, a sua história. Se o corpo é
relação, constante afetação e age simultaneamente à mente, podemos pensar que
na história do corpo-terapeuta, marcada pela exigência de um ser neutro,
fugia-se da relação, evitava-se a afetação e assim, consequentemente,
diminuía-se a potência de agir da mente. Como pensar a clínica sem relação, sem
afetação, sem mente, enfim sem corpo?
As mudanças foram várias ao longo do tempo. Na atualidade, cada
vez mais, pensa-se que o terapeuta, assim como um artista, age a partir dos
seus sentimentos, devendo utilizar-se do seu mundo interno enquanto dispositivo
terapêutico. O corpo-terapeuta foi convidado a incluir-se no encontro
terapêutico, a sentir os sentidos ali mobilizados dentro de uma relação viva e,
assim, o terapeuta passa a reconhecer sua própria presença e as forças
inerentes às suas próprias fronteiras. Por isso é importante cuidar desse
corpo, por isso é importante olhar para ele, escutá-lo, experienciá-lo,
(re)significá-lo.
Contudo, mesmo diante desses movimentos frente a lugar do
corpo-terapeuta na prática clínica, o medo de vivenciar esse corpo ainda é
sentido não só pelos iniciantes mas também pelos já andantes nesse campo. Seja
de forma consciente ou também inconsciente, volta e meia, somos pegos de
surpresa pensando ou sentindo: que roupa devo usar? Como devo falar? Para onde
devo olhar? O que devo falar? Como devo sentar? Se o paciente chorar, o que devo
fazer? E se eu tossir? E se o meu estômago roncar? E se me der uma vontade
súbita de ir no banheiro? E se eu me emocionar? Para todas essas perguntas,
apenas uma resposta: não temos como silenciar o corpo, ele pulsa, ele vive, ele
é imprevisível e nos mostra constantemente o quanto somos incapazes de
controlá-lo. Precisamos urgentemente (re)aprender a sentir com ele, a escutar
com ele, a viver com ele. O pensar nasce no corpo, tudo é corpo. Nós não
habitamos o corpo, nós simplesmente somos o corpo e por isso talvez a
necessidade de nos demorarmos mais nas sensações sem palavras, naquilo que
antes se comunica no/pelo corpo, para depois fazer marca na linguagem.
O corpo-terapeuta foi convidado a dançar no setting e dançar é se
superar, é perder-se de si mesmo, é abrir-se a outras possibilidades. Dançar no
setting exige reinventar o espaço, (re)construí-lo a partir das nossas
vivências, a partir das relações ali estabelecidas. Alguém já parou para se
perguntar porque a configuração, o cenário, o espaço da prática clínica parece
ser sempre o mesmo? Quem disse que é assim? Ou melhor, quem disse que é SÓ
assim? O nosso corpo está toda hora sentindo o espaço, transformando-o e sendo
transformado por ele. Assim, a forma como a gente se organiza espacialmente
fala sobre as escolhas que a gente faz na vida. O lugar que vocês escolhe para
sentar na sala de aula, o modo como seu corpo ali permanece dizem da maneira
como você enxerga as coisas.
A forma como o corpo percebe a vida se materializa na forma como a
gente organiza o espaço. A nossa casa, por exemplo, não é apenas uma junção de
ambientes e móveis, ela é sobretudo uma expressão do nosso si mesmo, sua
organização fala sobre nós. Mas e o setting, como o organizamos? Como
vivenciamos esse espaço? Se pudéssemos perguntar ao nosso corpo o que ele sente
ali, o que responderia? Ainda parecemos reproduzir o setting sobre a lógica do
“entender para dominar e, assim, controlar” (diagnóstico – interpretação –
insight), ao invés de vivenciá-lo pela ordem da experiência, no sentido de uma
percepção e de um sentir ampliados, condizentes com o momento, com a relação,
mais sujeito à improvisação do que propriamente a uma técnica.
Em meio a um cenário de falsos-self precisamos nos fazer reais e
vivos enquanto terapeutas dentro das nossas práticas, mas antes de fazer
torna-se necessário ser, sentir-se real e vivo. E por onde começar? Talvez
estejamos falando de algo que começa muito antes de sabermos quem somos e de
escolhermos a psicologia enquanto profissão. Talvez seja necessário (re)tomar a
história do nosso corpo para de fato saber o que o constitui...o que explica
esses trejeitos, a forma de sorrir, de caminhar, de gesticular, a forma como
chora, sente raiva, dança, amedronta-se, encoraja-se...quantas histórias,
quantas pessoas, quantos corpos existem num só corpo, quem dirá dentro do
setting, um espaço criado justamente para o encontro entre dois corpos e todas
as suas afetações e atravessamentos...
Sim, há teoria e técnica nesse corpo-terapeuta, mas há também
várias outras coisas que ajudam a compor seu ritmo e sua maneira própria de se
movimentar: histórias, amores, tristezas, dores, desejos, alegrias...enfim, um
território que se faz singular justamente pelo plural, que se faz original
justamente por suas marcas. Penso que só assim poderemos ampliar nossa
sensibilidade dentro do setting para outras formas de sentir, possibilitando
assim abandonar o corpo-casca, para de fato ser um corpo-casa e assim oferecer
moradia, alojamento, acolhimento e descanso para a dor do outro. A história
hoje é essa, não mais do corpo neutro, mas do corpo e suas potências, pois,
parafraseando Alberto Caeiro, “somos do tamanho do que vemos e sentimos e não
do tamanho das nossas teorias”
...e então, vamos sentir o nosso corpo?
*Produção
realizada na disciplina de Processos Clínicos, em 2016.
Sobre o Autor:
Camilla Baldicera Biazus possui graduação em Psicologia pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA-2008), mestrado em Psicologia Clínica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS e Doutorado em Linguística pela UFSM (Universidade Federal de Santa Maria). Atualmente é docente no Curso de Psicologia da URI - Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, em Santiago – RS.
E-mail: camillabiazus@yahoo.com.br
Comentários
Postar um comentário