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O ser-autor: deslocamentos entre a escrita científica e a escritura de si

O ser-autor: deslocamentos entre a escrita
científica e a escritura de si

The being-author: shifts between scientific
writing and self-writing


Camilla Baldicera Biazus
Universidade Federal de Santa Maria – UFSM/Brasil
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI/Brasil

RESUMO
Este artigo propõe uma reflexão, sustentada na teoria da Análise de Discurso, sobre a escrita científica e o seu imaginário de objetividade, a fim de pensar se há um espaço para o singular
do pesquisador-autor na produção científica. A partir disso, discute-se a possibilidade de tomar a escrita científica como uma escritura de si, mostrando os elementos que estão em jogo
no processo de escritura e suas relações com a subjetividade e com a constituição do ser-autor.

PALAVRAS-CHAVE: Escrita científica. Escrita de si. Autoria. Análise de Discurso.

ABSTRACT
This article proposes a reflection, sustained on the theory of Discourse Analysis, on scientific writing and its objectivity imaginary in order to think if there is a space for the singularity of the researcher-author in scientific production. From this, we discuss the possibility of taking scientific writing as self-writing, showing the elements that are at play in the writing process and its relation to subjectivity and to the constitution of the being-author.

KEYWORDS: Scientific writing. Self-writing. Authorship. Discourse Analysis.

Primeiras palavras

“Escrever é se mostrar, se expor, fazer aparecer
seu próprio rosto perto do outro”
Foucault

   Inicio este artigo sem saber ao certo se utilizo “inicia-se, inicio ou iniciamos” e me propondo a pensar a escrita científica, eis que me deparo de saída com algumas inquietações: afinal de contas, quem escreve o texto científico: “eu” escrevo, “nós” escrevemos ou escreve-“se”? Para quem é essa escrita e qual a sua finalidade? É possível pensar uma escrita neutra, “higiênica”, sem qualquer rastro da singularidade de um eu? E diante de tudo isso, ainda me indago: que espaço, dentro do texto, o ser-autor encontra para se constituir enquanto tal? Ou esse ser-autor já existe anteriormente ao processo de escritura? 
   É com base nesses questionamentos que pretendo construir o percurso dessa escrita, refletindo sobre as exigências da escrita científica ou acadêmica, como atualmente é denominada, que se pretende objetiva, neutra e ética. A partir disso, proponho pensar, por outro lado, a questão da subjetividade, da singularidade de quem escreve e que é ao mesmo tempo sujeito, autor e pesquisador. Neste sentido, será convocado o campo da Análise de Discurso a fim de mostrar a escrita enquanto espaço de memória, subjetividade e construção identitária.

(Re)pensando a escrita científica

   Seja qual for a sua forma, a escrita sempre traz à tona uma angústia diante da tão temida, mas ao mesmo tempo necessária página em branco (PERROT; SOUDIÈRE, 1994; SCHERER, 2012). Mesmo se tratando da escrita científica, esse espaço em branco se coloca entre o pesquisador e o rigor científico, perturbando a neutralidade e a objetividade, ditas “essenciais” para todos aqueles que almejam fazer ciência e/ou serem capazes de escrever um texto científico. Mas por que começar falando da página em branco para pensar a escrita científica?
   Não só porque a página em branco é o começo de toda e qualquer escrita, mas por pensar que se constitui num espaço que desestabiliza/ “provoca” a ilusão do pesquisador de ser um sujeito pleno, origem do seu dizer, desacomodando-o de um lugar imaginário de completude do eu para um “não lugar” de incertezas e insegurança. A página em branco seria esse “não lugar” onde, ao mesmo tempo em que se está dentro, se está fora também. Um “não lugar” que revela a vivência contraditória e constituinte da escrita, via página em branco. Para entendermos melhor esse “não lugar”, utilizamos três princípios elencados por Scherer (2008), a fim de pensar sobre a significação da palavra lugar. De acordo com a autora, o primeiro princípio faz referência à teoria lacaniana, que compreende lugar no sentido de estrutura simbólica e não de estrutura física. O segundo princípio considera os domínios e fronteiras para se pensar a questão de lugar, sem desconsiderar a regularidade com que as
repetições ocorrem. E o terceiro e último princípio destacado por Scherer diz respeito ao lugar enquanto jogo de força que busca um domínio estável, uma regularização. Nas palavras de Scherer (2008, p. 133), esses três princípios mostram que um “lugar não pode ser entendido como algo pleno, com bordas delimitadas tão somente pelas ditas fronteiras de domínios, mas como um espaço movente”, que desestabiliza o sujeito da sua posição de “saber absoluto”, revelando as marcas da História e da memória. Sendo assim, acreditamos que, no contato com a página em branco, o sujeito mobilize um lugar, ou melhor, um “não-lugar”, sempre em construção, de inevitável instabilidade e confronto entre o mesmo e o outro, entre o dentro e o fora, entre o eu e o outro. “Não-lugar” de anseios, dúvidas, medos, resistências, mas também de possibilidades.
   Talvez fosse possível e interessante pensarmos aqui, no contexto da escrita científica, a página em branco como um estado de desamparo necessário para o processo de escritura. O estado de desamparo é um termo comum que assume um sentido específico na teoria psicanalítica. Segundo Laplanche e Pontalis (2001), a noção de desamparo refere-se a um momento da vida onde o sujeito, ainda lactente, depende inteiramente de outro para a satisfação de suas necessidades básicas, sendo incapaz de realizar ações adequadas para pôr fim à tensão interna. O que está em jogo nesta noção, é a importância do outro na constituição do sujeito, na produção, reprodução e construção de sentidos. Assim, o sujeito deve renunciar, por hora, a sua referência imaginária “narcísico-fálica”, aquela que promove a certeza de que domina as coisas e o mundo, aceitando e reconhecendo o mal-estar da incompletude que lhe é constitutivo.
   É por considerar o sujeito como dotado de um inconsciente que, segundo Orlandi (2012), não existem processos discursivos sem a presença de falhas, apagamentos, incompletudes que nos servem de vestígios para observar a manifestação da resistência do sujeito frente à ideologia. Assim, é possível inferir, de acordo com Mariani (2008), que esse caráter disperso, múltiplo e contraditório faz parte não só da constituição dos processos de produção dos sentidos, mas também da constituição do sujeito. Nesse sentido, o sujeito é concebido como um “sujeito sempre determinado pela possibilidade do equívoco no campo da linguagem, que faz falhar a vontade de unidade e de transparência da comunicação” (MARIANI, 2008, p. 145).
   Neste sentido, a folha em branco será sempre uma questão perturbadora e angustiante na escrita científica, pois ao mesmo tempo em que parece trazer à tona a fragilidade e não autonomia do sujeito, revelando o seu assujeitamento em relação a sua realidade interna e externa, esbarra também na ilusão de completude e objetividade que a produção científica alimenta. Segundo Chauí (2005), essa crença numa certa imagem da objetividade sustentada pela ciência e exigida no exercício da escrita científica só pode ser pensada quando há uma coerência entre os dados e as representações, anulando-se os fatos. Para isso, a ciência cria uma estrutura, os procedimentos metodológicos, a fim de garantir um rigor ético e técnico na coleta, análise dos dados e produção do conhecimento. Contudo, há algo aí que falha, pois é impossível interpretar os dados sem considerar os fatos, isto é, a exterioridade, as condições de produção, a historicidade e o sujeito constituído e afetado pelo mal-estar da incompletude. O pesquisador, também autor e ator social (PERROT; SOUDIÈRE, 1994), é convocado, de alguma forma, a se posicionar, a colocar em jogo sua singularidade, rompendo, por hora, com a neutralidade científica exigida.
   Assim, está em jogo, a partir da página em branco (e não só dela), o processo de construção de uma autoria, de uma marca/posição singular do autor, mesmo que estejamos falando da escrita científica, uma vez que a verdade perseguida pela ciência nada mais é que um recorte da realidade feito a partir do olhar desse sujeito-pesquisador-autor. Por isso, a verdade existe apenas no plural, devido à diversidade de ordens do real possíveis. Sendo assim, é a partir desse sujeito que o objeto é retirado do mundo empírico e colocado no mundo real do conhecimento, produzindo verdades.
   Neste sentido, posso pensar que há uma singularidade em jogo na escrita científica, ou melhor, no processo de escritura científica, pois, mais do que o produto, o que interessa aqui é o processo mesmo em que esse fazer se constitui. Mas será possível pensar a escrita científica como uma possibilidade de escritura de si?

A escritura de si: (ex)posições no/pelo outro

   Poderia começar esse parágrafo discutindo acerca do próprio subtítulo: “a escritura de si como um processo de (ex)posições no/pelo outro”. A utilização da expressão (ex)posições busca evidenciar a escritura de si como um processo constante de construção de posições do sujeito numa atemporalidade, que faz com que as marcas do passado ecoem no presente, produzindo repercussões no futuro. Por isso a expressão (ex) vem dentro de parênteses, para, de alguma forma, representar a marca desse passado nas posições presentes e futuras do sujeito, que só são passíveis de construção no outro e pelo outro, uma vez que o ser, segundo Scherer (2011), não implica apenas o ser no singular, mas o estar sempre acompanhado pelo outro. Para ser, o sujeito precisa reconhecer a existência desse outro, e é o reconhecimento desse outro como um diferente de si que dá movimento a esse processo constante de construção de posições do eu que caracteriza neste estudo a escritura de si. Essas posições referem-se aos diferentes outros contidos no eu, as diferentes identidades produzidas e assumidas por esse sujeito a partir do outro. Cabe aqui também, destacar e diferenciar as noções de escrita e escritura, tal como trabalha Rasia e Cazarin (2008). A primeira é tomada como o processo de legitimação e transcrição da língua, como uma forma linguística de prestígio que se pretende hegemônica. Já a escritura é concebida “como gesto de interpretação do sujeito que, quando do processo de interpretação, e posterior (re)textualização, apresenta-se como responsável por aquilo que escreve” (RASIA; CAZARIN; 2008, s.p.).
   A escrita mobiliza o sujeito no sentido de uma implicação/ comprometimento com o que pensa e diz, pois produz registro, marcas de uma memória constituída pelo que foi ouvido, dito, lido, pois, segundo Foucault (2004), o movimento que a escrita busca efetuar não é o de perseguir o indizível ou revelar o oculto, mas sim “captar o já-dito; reunir aquilo que se pôde ouvir ou ler, e isto com uma finalidade que não é nada menos que a constituição de si” (p. 141). A escrita é constituída pelas diversas memórias, sentidos, vivências e leituras que constituem o sujeito. Assim, a escrita é um fazer que implica o sujeito a se apropriar dessas diversas memórias e fazê-las a sua respectiva verdade. Dessa forma, para Foucault (2004), ao mesmo tempo que a escrita se constitui daquilo que constitui o sujeito, ela também acaba por constituí-lo, possibilitando a ele uma “movimentação própria” das coisas já-ditas, “tal como um homem traz no rosto a semelhança natural com os seus antepassados, assim é bom que se possa aperceber naquilo que escreve a filiação dos pensamentos que ficaram gravados na sua alma” (p. 144). A escrita se dá num espaço entre “a autoridade tradicional da coisa já-dita” e a “singularidade da verdade que nela se afirma, sem desconsiderar a particularidade das circunstâncias que determinam o seu uso” (p. 143). Em uma perspectiva discursiva, é possível pensar que esse espaço se dá entre a interpelação ideológica e o atravessamento do inconsciente, que, de acordo com as condições de produção, pode facilitar ou dificultar a construção de espaços de ruptura, de resistência. Contudo, assim como não há dominação sem resistência, sem falha, não há escrita sem que haja constituição de si mesmo.
   Nessa esteira, propomos pensar acerca do processo de escritura a partir do que Riolfi (2011, p. 16) denomina “inferno da escrita”. Acreditamos que, diferentemente da escrita, a escritura exige que o sujeito vivencie e enfrente o “inferno” desse fazer, isto é, que esteja presente na sua produção, com seu corpo, sua história de vida, mostrando-se por meio de palavras que expressam a sua singularidade. O simples fato de “aprender a escrever” não apaga o fogo do “inferno da escrita”, pois a escritura é mais exigente, ela exige que o sujeito abandone, a cada momento, “as certezas de um ponto preciso de amarração de suas palavras com o saber para mergulhar sem rede de proteção naquilo que, inicialmente, não faz sentido algum, a dúvida que queima quem se propõe a escrever” (p. 23).
   Assim, nas palavras de Riolfi (2011), a escritura envolve um movimento de entrada no “inferno” e de se deixar sentir a angústia da incompletude, da falta, da diferença que separa o sujeito do outro. Esse movimento de entrada no “inferno”, descrito pela autora, pode ser compreendido aqui como uma necessidade de introspecção, necessidade de se olhar para dentro, necessidade do silêncio para escrever. Poderia eleger o silêncio como marca desse movimento de entrada no “inferno” da escritura, significando, segundo Orlandi (2007), a própria condição de produção de sentido. O silêncio “aparece como o espaço ‘diferencial’ da significação: ‘lugar’ que permite à linguagem significar” (p. 68). Com isso, o silêncio se torna condição para pensar o processo de constituição de sentidos e assim de constituição do sujeito. Nesse sentido, visto sob a perspectiva dessa questão, o silêncio, segundo Orlandi (2007, p. 49), “rompe com a absolutização narcísica do eu”, fazendo com que o sujeito se depare com a angústia da não-completude, necessária para a sua constituição. O silêncio é a marca do Outro no discurso para que assim possa significar.
   Na escrita, há uma relação particular com o silêncio, “há uma solidão do sujeito em face dos sentidos, em que o outro é mantido à distância (no limite do dialogismo) e em que o corpo-a-corpo com o sentido se faz em silêncio” (ORLANDI, 2007, p. 82). Assim, o silêncio se torna condição, para pensar o processo de escritura, pois mobiliza: um encontro do sujeito com seu mundo interior, um distanciamento da vida cotidiana e a possibilidade de significar a si mesmo. Ao silenciar na/pela escrita, o sujeito produz apagamentos entre o “eu pessoal” e o “eu-político”, entre o real e a ficção, entre o “eu-que-conta” e o “eucontado” (ORLANDI, 2007, p. 83). Com isso, vivencia, de certa forma, seu desejo de completude, de ser pleno. Todavia, esse espaço constituído pelo silêncio na escrita, segundo a autora, é um espaço intermediário, no qual o sujeito trabalha sua relação com o dizível, com aquilo que também lhe é exterior e determina o que se pode e se deve dizer.
   Na esteira desse pensamento, é possível inferir que o silêncio no interior da escrita mobiliza movimentos não só de entrada, mas também de saída, em um espaço que denominado como intermediário. É preciso estar dentro e fora do “inferno”, ao mesmo tempo. Dentro e fora de si e da escritura, pois, quanto mais se pensa em uma aproximação da essência, da singularidade, mais distantes e “fora” se está dela. Segundo Riolfi (2011), ao entrar nas profundezas do inferno, o sujeito se depara com “restos desconexos de falas daqueles que foram importantes ao longo de sua vida de modo que, quanto mais caminha ao encontro de si, mas se deparará com o não-eu” (p. 25-26). Mas é pelo fato de estar dentro que o sujeito consegue reconhecer o fora e vice-versa, num movimento contraditoriamente constante. Sousa (1999), nomeia esse movimento de “exílio”, um estado de estar longe da própria casa, tensão entre aquilo que é familiar e aquilo que é estranho. Para o autor, o “exílio” é condição necessária àquele que enfrenta o desafio de escrever, provocando um certo risco corporal que marca a constituição desse sujeito. É nessa tensão entre o familiar da língua e o desconhecido de um sujeito produzido pelo texto que a autoria pode se constituir enquanto marca, estilo, possibilidade de resistência.
   Retomamos aqui Foucault (1992, p. 47) ao falar sobre o nascimento da função-autor: “os textos, os livros, os discursos começaram efetivamente a ter autores (...) na medida em que o autor se tornou passível de ser punido, isto é, na medida em que os discursos se tornaram transgressores”. Assim, é a exigência de responsabilizar alguém pelo que é dito que funda a função/posição autor. Contudo, de acordo com Sousa (1999) é preciso interrogar sempre está ilusão de autonomia do sujeito, está aparente certeza de sua identidade uma vez que o sujeito se constitui a partir de uma exterioridade, no movimento/intervalo de “um ao outro”, do familiar ao estranho, do interno ao externo:
                                                                                                     Poderíamos pensar que uma das funções da escritura seria
                                                                                                    de manter vivo esse intervalo, de velar por essa alteridade
                                                                                                    necessária em nossa relação com a linguagem. O apagamento
                                                                                                    desta alteridade teria como consequência um empobrecimento
                                                                                                    da experiência [...] Muitos escritos podem vir a cumprir uma
                                                                                                    função de resistência. Resistência em dois sentidos: resistem
                                                                                                    à pausterização da experiência e também resistem ao leitor,
                                                                                                    obrigando-o a um esforço de encontrar para si outro lugar
                                                                                                    discursivo” (SOUSA, 1999, sp).

   Escrever exige assim suportar esse lugar de ausência, de não completude, produzido pelo próprio ato de escritura. De certa forma, penso esta ausência como algo da ordem de uma pausa, de uma zona de silêncio. Silêncios esses que, segundo Sousa (1999, sp) “não são mesmo eloquentes que muitos discursos e têm sua função e seu interesse numa trama discursiva qualquer [...] o ato de escritura e o próprio escrito surge justamente neste espaço produzido pela experiência de descentramento do autor na sua relação com a linguagem”. O homem contemporâneo se seduz com a ideia de poder prescindir da história, como se fosse a origem do seu dizer, como se isso se referisse à noção de autoria: o novo, o original, o inédito. A escrita se dá a partir de traços pessoais, mas também daquilo que é impessoal, exterior ao sujeito, efeito de discurso. Assim, é possível inferir, de acordo com Sousa (1999), que a escrita movimenta um certo apagamento do sujeito, mas que isso não implica a função de autoria, pois, conforme Foucault (1992), a autoria e a escrita se dão nesse jogo entre interno e externo, entre familiar e estranho. Dessa forma, a escrita coloca à prova a imagem do sujeito escritor, o seu narcisismo, desestabilizando-o e exigindo a busca de um outro lugar/posição possível, a tal condição de “exílio”.
   Dessa forma, o processo de escritura envolve o externo, aquilo que está fora do sujeito, e que, mesmo assim, produz marcas no seu interior. Nas palavras de Riolfi (2011, p. 26), a escritura pode ser pensada como um processo no qual o sujeito terá a impressão de que nada mais restou:
                                                                                                    Nem o outro, nem o si próprio, nem o caminho, nem o próprio
                                                                                                    inferno aonde vinha ardendo. No suposto lado de dentro, onde
                                                                                                    imagina residir sua essência, tudo o que encontrará será o nada.
                                                                                                    É, portanto, ao se apoiar no lugar deste nada sem substância
                                                                                                    que, subitamente se verá do lado de fora, mais propriamente
                                                                                                    dizendo, na cultura, na circulação social, onde por meio da voz
                                                                                                    do outro, poderá, finalmente, encontrar o que, desde sempre,
                                                                                                    lhe diferenciava (RIOLFI, 2011, p. 26).

   Neste sentido, segundo Scherer (2010), o processo de escritura movimenta um jogo de constituição de diferentes identidades (social, cultural, científica) que atravessam o sujeito, movimentando tempos remotos e futuros, posições opacas e fraturadas. Assim, o processo de escritura revela a fragilidade do sujeito diante da tentativa de controlar a sua realidade interna e externa, se deparando com uma “identidade que se esburaca pela porosidade do próprio ato de escrever. Porque escrever diz respeito ao revelar(-se), uma parte de um todo” (SCHERER, 2010, s.p.). É justamente nessa relação entre o mesmo e o diferente, que a escritura não só movimenta posições-sujeito, como também desloca e produz sentidos sobre um “texto-fonte”, termo empregado por Schons (2005, p. 138): “não apenas no sentido de origem, quando se trabalha com a noção de discurso fundador, mas no sentido de inscrição na mesma matriz de sentidos”. Assim sendo, o “novo”, aquilo que marca a diferença do/no sujeito, o que, muitas vezes, é nomeado como singularidade, emerge na escrita produzindo novos lugares e sentidos.
   Cabe aqui tecer algumas reflexões acerca do que se denomina enquanto “novo” e “velho”. De acordo com Petri (2004), pensar essas noções implica considerá-las como parte de um mesmo processo, onde o velho integra o novo e vice-versa. A fim de elucidar essa questão, a autora utiliza-se do conceito de memória discursiva, que, ao mesmo tempo em que é responsável pela estabilização de sentidos, essencial para a constituição do sujeito e dos sentidos, apresenta lacunas das quais emergem novos efeitos de sentidos e também acontecimentos que desestabilizam os sentidos já construídos. Assim, a memória produz um funcionamento contraditório, pois o processo de estabilização de sentidos é lacunar, ele falha na tentativa de completude, abrindo frestas para a emergência do novo no interior do mesmo, do velho. Contudo, segundo Petri (2004) há mais um movimento na memória discursiva: a emergência do novo é absorvida, e, às vezes dissolvida pela memória, fornecendo ao novo o estatuto de estabilizado, de “velho”, no interior da cadeia discursiva. Nas palavras de Petri (2004, p. 58):
                                                                                                   Por isso, o novo é tão efêmero, pois ele logo passa a integrar
                                                                                                   o velho e nele potencialmente surgirão outros acontecimentos
                                                                                                   e assim sucessivamente. Às vezes, a absorção ou dissolução
                                                                                                   do acontecimento se dá de forma tão perfeita no interior
                                                                                                   da cadeia discursiva que se torna difícil, até mesmo para um
                                                                                                   analista de discurso, identificar um ponto fundador, onde se
                                                                                                   instalou, de fato, o novo que no momento seguinte já não
                                                                                                    era mais novo, constituindo-se apenas como mais um ponto,
                                                                                                   mais uma articulação, mais uma peça na discursivização dos
                                                                                                   acontecimentos (PETRI, 2004, p. 58).
   Neste sentido, esse movimento rumo à “novidade”2 só se faz possível pela e na memória, em um processo de retorno do mesmo em outro lugar. Esse retorno não significa uma “retomada fiel” do passado, porque sempre é possível dizer de outra maneira, deslocar sentidos, uma vez que, ao escrever, o sujeito precisa fazer escolhas e essas são movidas por “ideias, sonhos pessoais e o modo como concebemos a realidade, iniciando sempre uma nova escrita, que vai infinitamente se modelando” (SCHONS, 2005, p. 141). É nesse sentido que a escritura provoca a emergência da singularidade, pois, ao escolher, o sujeito se define e define também a sua escrita, articulando uma maneira própria de dizer aquilo que já foi dito:
                                                                                                   Daí porque dizemos que, quando escrevemos, estamos sempre
                                                                                                   fazendo rascunhos em nossas vidas, os quais se cruzam com
                                                                                                   tantas outras vidas rascunhadas e (re)desenhadas, e que a nossa
                                                                                                   escrita implica escolhas, talvez diferentes daquelas que já estão
                                                                                                   legitimadas (SCHONS, 2005, p. 140).
   escritura pode assim ser pensada como um constante processo de “escolhas”, no qual o sujeito reinscreve a História e se reinventa nela, sendo que, tanto a escrita quanto o sujeito se constituem enquanto esboço, algo que está sempre por terminar e que não esgota de inscrever-se. “Daí porque nenhuma escrita será igual a outra, nenhuma verdade será tão igual ou próxima da outra. O fato de desconfiarmos de nosso primeiro rascunho e inventarmos sempre outro [...] implica esforços heterogêneos e, ao mesmo tempo, únicos” (SCHONS, 2005, p. 141). Essa é a concepção da Análise de Discurso acerca da escrita: espaço constituído pela incompletude, onde memória, historicidade e singularidade transitam, ora se aproximando, ora se afastando. Assim sendo, poderia dizer, que a escritura se dá no percurso entre as práticas sociais. É somente na intervenção da exterioridade que o sujeito constrói sentidos e se constitui por meio deles. Essa exterioridade é pensada aqui, não só como os efeitos do social e do ideológico, mas também como os efeitos do psíquico, que representam um olhar de outro lugar que possibilita ao sujeito reconhecer-se enquanto tal. Assim, conforme menciona Riolfi (2011), a escritura pode ser pensada como uma operação de transformação subjetiva que possibilita ao sujeito a construção de um estilo singular.
   Ainda em relação à exterioridade que atravessa a escritura, é importante pensá-la como um olhar que torna possível ao sujeito significar e, assim sendo, é importante retomar a questão da autoria, já que é trabalho do autor “naturalizar” os elementos da exterioridade. Para pensar sobre isso, nos remetemos a Foucault ([1966] 2004) e sua relação entre escrita e morte: “Eu diria que a escrita, para mim, está ligada à morte, talvez essencialmente à morte dos outros, mas isso não significa que escrever seria como assassinar os outros [...] Para mim, escrever significa lidar com a morte dos outros (...) de certa maneira, falo sobre o cadáver dos outros”. A partir dessa citação, é possível inferir que o autor coloca em jogo a necessidade do sujeito-escritor acreditar que ele é a origem do seu dizer, que não há senão cadáveres a partir dos quais a escrita seria um instrumento para autópsia: “Com minha escrita eu percorro o corpo do outro, faço incisões nele, levanto os tegumentos e as peles, procuro trazer os órgãos à tona e, com isso, fazer aparecer finalmente o local da lesão” (FOUCAULT, [1996] 2004, s.p.). Assim, a escrita mobiliza, de certa maneira, um manifestar a si próprio e aos outros. É um processo que envolve um “mostrar-se, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro” (FOUCAULT, 2004, p. 145-146).
   A partir da escrita, o sujeito assume uma posição, um caminho pelo qual irá acessar a realidade e produzir conhecimento sobre ela, produzindo novas marcas ou (re)inscrevendo as já existentes. Nesta perspectiva, torna-se importante explicitar que tanto o lugar social (posição-sujeito) em que estão inscritos os sujeitos que escrevem afeta o processo de escritura, quanto o processo de escritura afeta a constituição subjetiva desse sujeito. Nas palavras de Orlandi (2008, p. 204), “a escrita é uma forma de relação social. Ela estrutura relações”.

Mas afinal, o que é escrever a ciência?

   De acordo com o que vem sendo exposto e debatido ao longo do artigo, é possível inferir que, se por um lado o sujeito da escrita científica é tomado por um rigor técnico e metodológico, almejando e acreditando ter o poder de controlar os sentidos e mesmo assim assumindo uma posição de “neutralidade” diante dos fatos; por outro lado, a Análise de Discurso nos mostra um sujeito que tem seu processo de escrita afetado por uma historicidade, pelas condições de produção e por aquilo que o singulariza (inconsciente). A exterioridade, destacada pela Análise de Discurso, é justamente o que torna possível a escritura, a produção de sentidos e, consequentemente, a constituição do sujeito-autor. Nesta perspectiva, não temos como separar as questões singulares do sujeito e a construção da história, do conhecimento científico, pois uma depende da outra, é uma questão constitutiva e assim sendo, não temos como pensá-la, no âmbito da discursividade, como dicotômicas.
   A fim de sustentar teoricamente a ideia de que ao construir conhecimento esse sujeito também se constrói e afeta a produção científica com a sua singularidade assim como é afetado por ela, me reporto à figura do “buquê invertido” criada por Paul Henry ([1977] 1992). Através dessa figura, o autor vai dissertar acerca da impossibilidade de o sujeito do conhecimento (sujeito universal ou sujeito epistêmico) assumir uma posição de “extrema” neutralidade e objetividade, uma vez que esse sujeito, em sua singularidade, apresenta um imaginário acerca do real que o constitui afetado historicamente, tanto pelo caráter social quanto individual do sujeito. E é na/pela historicidade que o sujeito é tomado por posições-sujeito que vão influenciar diretamente na forma como se constituem os sentidos. Neste sentido, é a exterioridade que produz a significação, que possibilita a produção do conhecimento científico e que por isso torna esta uma questão “aberta ao outro”: o “outro história”, o “outro singular”, o “outro ideológico”.
                                                                                                  Considerar assim o sentido [nas relações entre língua, sujeito
                                                                                                  e, então, história] indica que ele (...) não pode ser procurado
                                                                                                  nas palavras, no texto ou no discurso de um indivíduo, mas na
                                                                                                  relação desse texto, dessas palavras, desse discurso individual
                                                                                                  com outros textos, outras palavras, outros discursos, relação
                                                                                                  na qual esse sentido se constitui enquanto efeito ideológico
                                                                                                  (HENRY, [1977] 1992, p. 140).
   Assim, escrever/produzir o conhecimento significa interferir no processo, seja através de traços já vividos ou (re)vividos na própria escrita, seja através da história pessoal ou coletiva, mudando, transformando ou inventando nela novos sentidos. A partir daí, quero defender a ideia de que a verdade perseguida na produção do conhecimento científico existe a partir do modo como o sujeito olha o “buquê de Henry”, pela posição-sujeito que ocupa, pelas condições de produção que encontra-se assujeitado, pelas suas lembranças e traços singulares. A história existe porque o sujeito existe e o sujeito existe porque está na história.
   Assim sendo, estaria diante de que verdade? A verdade da história? A verdade do sujeito? A verdade da ciência? Entro aqui no campo instável dos limites entre o real e o ficcional, como bem falou Foucault ([1969] 2009) acerca do trabalho do historiador, ou melhor, do sujeito que pesquisa. Para o citado autor, a verdade da ciência só existe enquanto ficção e é papel do pesquisador fazer funcionar a ficção na verdade, a fim de que, através do discurso de verdade, seja possível “ficcionar”, fabricar o novo. Neste viés, a produção do conhecimento científico estaria na ordem de uma “verdade-ficção”, pois o real está aberto a uma multiplicidade de olhares, sentidos e memórias. É importante destacar aqui que a ficção não anula a realidade, não é um antônimo de verdade, mas sim uma versão da “realidade-verdade” que funciona a partir do modo como foi narrada pelo sujeito. Dessa forma, não há real sem ficção, bem como não há ficção sem real, sem verdade. E essa “verdade-ficção” vem para revelar, mais uma vez, que toda a escrita traz consigo um processo de escritura de si, constituindo-se em um exercício para o autor que, ao escrever, constrói-se enquanto sujeito. Através da escrita, o sujeito dá forma a uma realidade encontrando uma maneira de se posicionar diante dela.

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** Artigo publicado na Revista Estudos da Língua(gem), v. 12, n. 2, p. 217-234 no ano de dezembro de 2014.


Sobre a Autora: 
Camilla Baldicera Biazus possui graduação em Psicologia pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA-2008),  mestrado em Psicologia Clínica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS e Doutorado  em Linguística pela UFSM (Universidade Federal de Santa Maria). Atualmente é docente no Curso de Psicologia da URI - Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, em Santiago – RS.
E-mail: camillabiazus@yahoo.com.br

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