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13 razões para morrer em vez de crescer

13 razões para morrer em vez de crescer

Por que as fracas razões do suicídio de Hannah soariam convincentes para outros adolescentes?

E se a vida adulta fosse um lugar para onde ninguém quer migrar? E se nosso presente fosse um futuro que ninguém quer ter para si, nem nós? Há um rumor de que muitos dos que são hoje adolescentes correm o risco de desistir da vida antes de virar adultos. O medo de que esteja ocorrendo uma espécie de epidemia suicídio de jovens, similar ao mito do suicídio de lêmingues, diz muito dos adultos que os trouxeram ao mundo e dos que ocupam-se deles enquanto terminam de crescer. Talvez, para os mais velhos, seguir adiante, deixando a adolescência para trás, esteja equivalendo a morrer.
Essa preocupação diz respeito, evidentemente, aos bem nascidos, os que “têm tudo”. Os outros são dizimados na guerra do tráfico ou na carnificina da prostituição, assim como ocorre com os que vivem em nações em guerra. Para estes, o futuro não é uma opção, a realidade incumbe-se de tirar-lhes a vida na flor da idade. Onde foi que falhamos para temer a desistência de tantos entre os que poderiam dar-se ao luxo de realizar os melhores sonhos que idealizamos para eles? Por que eles se negariam a receber essas dádivas que nossa sociedade injusta oferece a tão poucos?  Precisamos vê-los aproveitar o maravilhoso pacote de diversões adolescentes que lhes vendemos para alicerçar a crença no ideal da eterna juventude. Pais e adultos em geral têm investido fortunas em produtos, elixires, comportamentos e promessas que lhes forneçam a ilusão de ter devolvida e preservada uma adolescência de plástico, de filme publicitário, provavelmente em nada parecida àquela que viveram.
Um encontro bem sucedido entre a indústria de entretenimento e seu público acendeu esse rastilho de pólvora: o pânico dos adultos de que seus adolescentes se suicidassem. 13 Reasons Why, o seriado, chegou às telas caseiras dez anos depois do livro que lhe deu origem, Os 13 porquês, de Jay Ascher, lançado em 2007. Trata-se da história do suicídio de Hannah Baker, uma garota norte-americana de classe média. Rapidamente os jovens jogaram-se em maratonas para assisti-lo, enquanto seus mais velhos passaram a alarmar-se com ele, temendo uma onda de suicídio coletivo. Um seriado não tem o poder de ser uma espécie de Flautista de Hamelin, cuja melodia levaria nossos jovens a jogar-se de um precipício como os ratos. Nossos temores dizem mais da relação que nós adultos temos com a juventude do que da vontade concreta dos adolescentes de tirar a própria vida.
Ao longo de 13 episódios, ou capítulos, somos convidados a escutar as gravações deixadas após a morte de  Hannah, nas quais ela vai arrolando os acontecimentos que a motivaram a cortar os pulsos. Em cada uma das fitas cassetes, que ela deixa para serem ouvidas por aqueles a quem culpa pela sua morte, ela vai tecendo seus sofrimentos e responsabilizando uns e outros por isso. Ha situações graves, como por exemplo ter sofrido um estupro, assim como ter sido obrigada a presenciar situação similar ocorrida com uma amiga. Porém, encontramos também motivos mais pueris, como o desentendimento com uma amiga e o fato de uma poesia da protagonista ter sido publicada, anonimamente, à sua revelia, por um colega que admirava seu trabalho, e ter chamado a atenção na comunidade escolar.
A série foi considerada um alerta sobre os efeitos letais do bullying na adolescência. Na tela, a comunidade escolar e as famílias entram em uma espécie de histeria coletiva, como se todos os alunos estivessem em risco de suicídio, vitimados pelos maus tratos sofridos por parte de seus contemporâneos. Fora da tela, passou a considerar-se a série como um potencial gatilho que levaria seu público a imitar o ato da protagonista.
Quem consegue lembrar-se, sabe que os anos adolescentes não são fáceis de transpor, porém, se tantos se sobrepujaram a essas dificuldades, por que os jovens atuais não o fariam? A forma explícita em que o ato suicida é apresentado na série parece ter o potencial de funcionar como uma espécie de tutorial para ensinar aos jovens a matar-se, assim como muitos supõe que a violência nas telas ou games os levaria a empunhar uma arma e sair dizimando seus colegas. Embora o entorno social exerça fortes influências, tanto mais potencialmente negativas quanto mais frágeis sejam os indivíduos, o suicídio não funciona por simples contágio, assim como tampouco ocorre com a violência. Descartado isso, faltaria indagar por que as treze razões de Hannah soariam convincentes para sua audiência.
O que teria algum potencial para despertar identificação é a certeza da protagonista de ser vítima de maus tratos ou de descaso por parte, principalmente, dos outros jovens. Ela é branca, de classe média, inteligente, bonita e nasceu em uma família amorosa, com pais que tentam comunicar-se com ela, respeitar seus desejos e propiciar-lhe todas as condições possíveis para realiza-los. Mas Hannah sofre constantemente.
Ela enfrenta a selvageria própria da cultura fútil de aparências em que vivemos, ambientada naquele habitat, tão popular nos seriados norte americanos, em que o Ensino Médio equivale a uma espécie de ilha onde são confinados exemplares dos piores tipos de espécime humano. Nenhum de nós, após ter passado os anos adolescentes, discordará de que é um trecho da vida que pode adquirir tintas bem dramáticas, no qual somos destinados a viver em um lugar bem pouco arejado. Para piorar, somos uma péssima companhia para nós mesmos: a autocrítica feroz, tanto mais quanto espera-se tanto dessa etapa da vida, é a musa que canta durante todo o percurso adolescente.
Os outros são considerados um inferno quando os imaginamos fazendo eco ao autodesprezo que sentimos. Nossos contemporâneos, cada um às voltas com os mesmos dramas, são incapazes de olhar para fora, também imersos em suas próprias ruminações narcisistas e autodepreciativas. Paradoxalmente, os adolescentes precisam de amigos e amores como de oxigênio, como contraponto ao vazio deixado pelo enfraquecimento dos laços familiares. A tendência natural é, então, que amores sejam trágicos ou arrebatadores, enquanto as amizades envolverão pactos se sangue ou traições imperdoáveis.  Se esse olhar amoroso dos pares não for capaz de curar as feridas do desamparo, os adolescentes sentem-se frágeis, inconsistentes, à morte, mas raramente morrem disso.
Na vida de Hannah, seus colegas, tão autocentrados como ela são acusados da mesma incapacidade de empatia que ela própria demonstra amplamente ter. Ela não liga para as dificuldades alheias: a timidez paralisante, o medo de assumir-se gay, as durezas de uma família devastada pelas drogas, a rigidez militar dos pais de seus amigos, a dor de ter presenciado o suicídio da própria mãe, a fragilidade dos que cercam lideranças perversas. Nenhuma das histórias dos outros parece ter a mínima relevância para a jovem suicida. No palco, os holofotes focam apenas seu único e precioso sofrimento.
Por que solidarizar-se com tanto egoísmo? Certamente isso é uma tentação para aqueles que ficaram presos a uma posição infantil ou são eternamente saudosos dela, pois acreditam ter nascido para ser cuidados e admirados incondicional e eternamente. Tal atitude majestosa só cabe às crianças bem pequenas, que iludem-se na condição de bibelô da casa. Os adolescentes e adultos que recusam-se a admitir qualquer protagonismo nos revezes sofridos querem ser como esses bebês, iludidos no amor supostamente onipresente dos seus pais. Ao longo da infância vamos percebendo que não é bem assim, que eles são mais fracos e desatentos do que gostaríamos. Graças a isso vamos desligando-nos deles, interessando-nos por outras pessoas, por assuntos fora do lar, por brincar e falar, por crescer. A adolescência é o trecho mais decisivo dessa separação, quando começamos a partir de vez. Por isso mesmo é uma fase tão difícil, na qual duvidamos fortemente ter forças, ou mesmo desejo, de fazê-lo. Nesse sentido, o que mais preocupa na popularidade desse seriado não é que ele pudesse desencadear uma epidemia de suicídios juvenis, é sim tanta empatia como uma personagem cheia de autocomiseração e tão pouco disposta a incumbir-se de suas amarguras e de sua própria vida.
Tal identificação de fato pode ocorrer, não no sentido do suicídio, mas dos sofrimentos daqueles que acreditam estar sempre no centro dos olhares, tal como Hannah. Trata-se de um expediente bastante simples para lidar com a perda do lugar central que as crianças supõe ocupar no amor dos pais: projetá-lo fora de casa, supondo-se igual importância, mesmo que às avessas.
A tarefa da sedução amorosa, a que se entregam os adolescentes apaixonados, é um antídoto contra esse narcisismo infantil. Tomar medidas para despertar o interesse daqueles a quem desejamos depende de uma sabedoria oriunda da experiência de desencontros com o afeto e interesse dos pais. O apaixonado supõe que é preciso fazer algo para chamar a atenção e fazer-se amar. Se a queda do trono de criança majestosa não tiver ocorrido, todo tipo de dificuldade será sentida como uma rejeição insuportável, uma estocada a mais na dor da separação com os pais. Se acrescentarmos a isso o ingrediente de famílias que colocam seus descendentes, até avançada idade, como príncipes e princesas cujos desejos são uma ordem, teremos muitos jovens como Hannah. Serão incapazes de enfrentar qualquer revés com outra reação diferente de uma chantagem: se não for como espero, não brinco mais, vou morrer e a culpa será sua. Para estes, se sua presença não puder ser majestosa, quem sabe sua ausência seria?
Mas estes são tipos raros, pois a maior parte dos adolescentes tende a não cair no canto de sereia dos mais velhos, que lhes oferece a comodidade hipnótica de ser mimado para sempre. Desse modo, seus pais nunca envelheceriam, jamais se tornariam superados e obsoletos e nunca criticariam os pais. Até os mais “malcriados” dos filhos acabam por revelar insatisfações com o ninho e apontam para fora dos limites do lar. Fora de casa, quer para os melhor preparados, quer para os mais imaturos, os desafios são assustadores e o convívio com os outros de sua geração a prioridade. Se pudéssemos dizer a um verdadeiro adolescente uma única frase, na tentativa de dar-lhe força para transpor os revezes dessa época seria: “acredita, isso acaba!”.
A ideia de passar vários anos em um convívio cotidiano com outros jovens igualmente destemperados, por horas imóveis em um único recinto, parece ter se tornado um pesadelo para boa parte das pessoas. Esse lugar é a escola. Se pelo menos tivéssemos clareza de que isso é temporário, ajudaria. Mas quando estamos lá parece que não haverá amanhã. O presente é opressivo, tem-se a sensação de estar preso em um filme infinito, sem cortes nem edição, em um único plano sequência. Do futuro, nada se espera, pelo simples fato de que um jovem custa a acreditar em sua capacidade de fazer algo com sua vida.
O futuro é tanto mais incerto quanto tem sido vendido como indesejável. Para muitos, ser adulto passou a equivaler a uma gincana de tarefas sem sentido, desprovidas de glamour. Pelo menos é assim que os desmemoriados dos pesadelos da juventude vendem o sonho de ser bonito, forte e sensual, como um estado que deveria ser ininterrupto. Mas são raros os adolescentes que realmente enxergam-se assim, mesmo os poucos que o olhar alheio coloca no pódio da existência. Isso sem contar o fato de que a maior parte considera-se carta fora do baralho das perfeições estéticas.
Hannah é linda, desejada por muitos e admirada por alguns, que lhe dedicam a amizade e lhe propõe alianças naquele ambiente hostil. O outro protagonista da série, uma espécie de narrador do seriado, é tão tímido quanto apaixonado por ela. O garoto custa a declarar-se devido à sua insegurança, essa teria sido sua falha, a razão que lhe coube. Portanto, o ambiente para nossa heroína não é mais hostil do que para seus contemporâneos, mas ela queixa-se, acusa, arma verdadeiras ciladas para os que convivem com ela de modo a provar a si mesma e à posteridade que não foi escutada, amada e respeitada o suficiente. Suas reclamações fazem eco em jovens e adultos porque gostamos de crer que alguém é mais responsável do que nós mesmos pelo destino que escolhemos.
Por outro lado, entre as motivações para seu ato, encontram-se, principalmente, as várias formas de opressão às mulheres, muito mais ameaçadoras quando elas encontram-se no auge de seus atrativos físicos. Constrangimentos verbais, postagem de fotos comprometedoras na rede, maledicência e, por fim, o abuso sexual propriamente dito, são práticas, infelizmente, correntes e tradicionais.
As adolescentes sempre lidaram com isso como se fosse inevitável, até que o movimento feminista começou a viabilizar-lhes a coragem para reagir e organizou uma pressão social para que suas denúncias fossem recebidas de forma respeitosa. Nossa personagem e suas amigas não partilham desses avanços, inclusive têm parca solidariedade entre si, mas a série revela sofrimentos que garotas e mulheres contemporâneas não têm deixado serem varridas para baixo do tapete. Portanto, poderíamos dizer que estamos frente a um seriado interessante, no sentido da denúncia feminista dos perigos do bullying contra as adolescentes. Curiosamente, não tem sido essa a razão de sua popularidade.
“Suicídio é para fracos”, diz uma personagem secundária, uma garota estranha, sofrida e forte que vai ganhando visibilidade ao longo dos capítulos. Ela é a única que realmente ousa criticar a protagonista principal, cujas reivindicações tantos, dentro e fora do seriado, parecem validar. Para a maior parte do público, estamos em permanente dívida com os adolescentes. É imprescindível provê-los de mais, sempre mais recursos e cuidados, ignorando que é justamente assim que se constrói uma gaiola dourada onde eles ficam presos em nossos sonhos e fadados a uma fragilidade poli-queixosa.
Se nossos verdadeiros sonhos forem os da juventude eterna, que gostaríamos de ter tido, crescer lhes seria proibido e tornar-se adultos uma derrota. “Viva rápido, morra jovem, seja um cadáver bonito”, é uma frase popularizada por James Dean, um dos primeiros ícones da adolescência tornada um ideal estético. A juventude tem deixado de ser um lugar de passagem para tornar-se uma espécie de Terra do Nunca, onde todos gostariam de ser congelados. Mas, assim como a ilha de Peter Pan, a tal adolescência eterna, associada a alguma forma de plenitude de prazeres e potencialidades, só existe no mundo da fantasia.

Sobre a autora: Diana Lichtenstein Corso
Diana Lichtenstein Corso é Psicanalista Membro da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre). Formada em psicologia pela UFRGS, trabalhou com crianças e no campo dos problemas de desenvolvimento infantil junto ao Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e em várias outras instituições. Atualmente atende jovens e adultos. Desde 2001 é colunista do jornal Zero Hora e da Revista Vida Simples, além de participações em várias antologias e revistas. Publicou o livro Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis, em 2005, e Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia, em 2010, ambos pela Ed. Artmed, escritos em parceria com seu marido Mário Corso, ambos finalistas do Prêmio Jabuti. Em 2014, publicou pela Editora Arquipélago Tomo conta do mundo: conficções de uma psicanalista, composto de crônicas e ensaios, vencedor dos prêmios de Livro do Ano e Crônica de 2015 da AGES (Associação Gaúcha de Escritores) e do prêmio Açorianos na categoria Crônica de 2015.
Diana Lichtenstein Corso é Psicanalista Membro da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre). Formada em psicologia pela UFRGS, trabalhou com crianças e no campo dos problemas de desenvolvimento infantil junto ao Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e em várias outras instituições. Atualmente atende jovens e adultos. É colunista desde 2001 do Segundo Caderno, suplemento cultural do jornal Zero Hora, além de participações em várias antologias e revistas. Publicou o livro Fadas no Divã: psicanálise nas histórias infantis, em 2005, e Psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia, em 2010, ambos pela Ed. Artmed, escritos em parceria com seu marido Mário Corso.

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