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Notas de um Abismo


NOTAS DE UM ABISMO


Logo no começo lembro-me de ouvir sobre neutralidade, ou a possibilidade de uma blindagem ao outro que nos vem num pedido de ajuda. São tantas as teorias e a magnitude de seus conceitos que vislumbram abraçar a plenitude da infinita complexidade incompreensível. Que seria a neutralidade senão o comodismo de manter-se a margem, de não deixar-se tocar e afetar-se pelo sujeito que vem ao encontro, se despe por completo e dispõe sobre as tuas, as minhas mãos distraídas, a fragilidade há tempos escondida, de si próprio e da impiedosa velha safada: vida.

Ao tocar uma alma é que se percebe a neutralidade não existe, nem poderia. Carl Jung disse uma vez "ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana", particularmente acredito muito. A psicologia não nos torna senhores de nenhum saber, donos de uma verdade inquestionável e absoluta (que é a verdade/mentira?). O oceano do desconhecido mundo é indecifrável, e é exatamente isso que nos torna mais humanos e menos deuses.

Na ingenuidade do meu saber, eu romantizava o "ser psicólogo" como um super herói detentor do magnifico poder de mergulhar no abismo do outro fragmentado onde pelo passado/presente é devorado e assim traze-lo enfim a luminosidade da superfície. Facilmente dessa forma. Mal sabia que eu da crueza da insuficiência humana. Foi sem delicadeza alguma que descobri. Não sou herói, não tenho asas, super poderes e muito menos tenho uma capa.

A primeira vez que alguém desabou sobre mim, foi como um enorme soco no estomago, literalmente. Com todas as forças a segurei na beira, meu contrapeso a impedia de mergulhar. Entretanto tempo depois, rápido demais acabou por escorregar se lançando ao fundo. Minha reação, sobretudo como bicho humano fora o querer resgatar, aquecer e cuidar da tua ferida, aquela que tu mais cuida e sangra. Mas eu não podia, não devia...

Perdi a noção do tempo enquanto imóvel permaneci olhando as águas escuras do teu mar. Na promessa de permanecer eu te acolhia da forma que eu podia (não tenho superpoderes você lembra?). Uma imensa pedra de concreto prensava meio peito enquanto lá você permanecia, e acho que é isso que costumam chamar de angústia. A sensação impotência me deixou de braços cruzados. Era preciso querer bater os braços e enfrentar seus demônios, e isso tinha que vir de você. 

Como eu queria tanto poder te avisar: Não vai por ali, segue por aqui. No entanto a vida nem sempre dá um ponto para traçar uma reta. Tudo bem ter dúvidas, se fosse diferente perderíamos o charme das inesperadas curvas e que graça teria viver sem cambalear por caminhos tortos.

Há quem diga que psicólogos são intocáveis, uma vez que são preparados, para caminhar entre as trincheiras e estilhaços. Terá dias que um ou todos nós nos debruçaremos encolhidos numa calçada qualquer, como uma criança que aos soluços chora depois de ralar os joelhos. Psicólogo também sente. Poucos entenderão.

Então sorrindo, sempre sorrindo do próprio abismo emergiu. Um ser renovado, repleto de vida. Os olhos ainda eram tristes, porém eu sabia e tu descobririas mais tarde que a estranheza por jamais se sentir pertencente nem daqui ou dali, era porque você se tratava de uma flor que nasce para dentro. Uma flor rara e doce, que nascia para dentro e esperava uma mão, um ombro ou qualquer gesto que demonstrasse afeto e importância.

Foi um longo caminho cheio de pedras e momentos caóticos. Estilhaçando teus medos MA-RA-VI-LHO-SA-MEN-TE escancarando todas as portas você finalmente desabrochou. Foi lindo demais te ver corajosa se entregando a escrita de uma nova história, a tua história.

- Obrigada por não desistir de mim. Quando até mesmo eu já havia. Ela disse. E eu sorri.
(sorrir com o coração era tudo que eu tinha e era seu).

Acomodada numa cadeira no canto da sala, percebo o movimento do tempo. No agora que a mim repousa entendo a possibilidade de "salvar" trançando as paredes da vida com gestos miúdes, ainda que eu seja um falho mortal.


Sobre a autora:
Foto do perfil de Angélica Erd, A imagem pode conter: uma ou mais pessoas, óculos de sol e close-up
 Angélica Erd é acadêmica do curso de Psicologia da Uri Campus Santiago e integrante do Grupo Mutações Poéticas.

 

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