O filme foi dirigido por Henry Selick: “Coraline e o Mundo Secreto”, uma adaptação do livro “Coraline”, do escritor Neil Gaiman. Este texto relacionará a simbologia encontrada em algumas cenas, com os conceitos teóricos de Melanie Klein.
O filme conta a história de Coraline Jones, uma menina aos onze anos
de idade, filha única, cujos pais escritores encontram-se muito ocupados
com o trabalho e não lhe dão a devida atenção. A história começa com a
família chegando de mudança em um antigo casarão chamado “Palácio
Cor-de-Rosa”. A senhoria não aceitava famílias com crianças porque, sua
irmã desapareceu misteriosamente quando ainda era criança. O lugar é
sombrio, chove com frequência, mas, apesar das chuvas, o jardim
em frente ao casarão parece sem cuidados e quase sem vida. Chama a
atenção o fato de os pais de Coraline se dedicarem a escrever um
catálogo sobre jardinagem, mas, parecem indiferentes ao jardim que jaz
em frente às janelas. Coraline critica sua mãe por não deixá-la brincar
na chuva e na lama: “Você e papai são pagos para escrever sobre plantas e
odeiam terra!”, diz ela. Por muitas vezes Coraline tenta atrair a
atenção de seus pais absorvidos pelo trabalho. Mas, eles sempre dão um
jeito para que ela se afaste, fique longe deles, se entretenha com
qualquer outra coisa, mas, não os atrapalhe. Coraline tenta dialogar com
a mãe, mas, ela não corresponde. Há um momento em que Coraline comenta
que quase caiu em um poço e que poderia ter morrido. A mãe responde
displicente: “Que legal!”. Também não deu importância para a alergia na
mão da filha causada pela varinha de rabdomante.
É nítida a inversão de papéis das figuras parentais: a mãe é
dominadora, autoritária e ríspida com a filha. O pai trata a esposa como
“a chefe” e mostra-se submisso às suas vontades. Pertence ao pai a
tarefa de cozinhar, nunca à mãe. São questões que vão sendo apontadas na
fala de Coraline que não consegue ter essa mãe como um objeto total
porque esta não corresponde aos seus anseios. Assim como o pai, que em
nada corresponde ao pai idealizado. O pai de Coraline, para livrar-se da
filha, sugere à ela circular pelo casarão para listar todas as portas,
as janelas e tudo o que é azul. A cor azul é considerada uma cor fria e
prevalece na maior parte do filme. Dentre seus diversos significados,
pode estar associada à monotonia, à depressão, deixando o ambiente
formal, porém, sem graça pela ótica da criança. Pode indicar a
maneira como Coraline está percebendo a realidade: “Incrivelmente
chata!”, como ela mesma o diz. Porém, em muitos momentos, Coraline é
contrária à opinião de sua mãe quanto a impressão que tem dos vizinhos:
Sr Bobinsk, o misterioso domador de ratos e as duas senhoras April Spink
e Mirian Forcible, ex-atrizes de espetáculos, que em
determinado momento recitam “Hamlet” para ela, uma apologia ao complexo
de Édipo. Além de dar o tom à realidade conforme seus conteúdos
internos, Coraline tem o comportamento de oposição à mãe, bastante
marcado em várias cenas.
Em uma cena em que a família está fazendo uma refeição,
Coraline pergunta à sua boneca: “Acha que estão querendo me envenenar?”,
referindo-se à comida preparada por seu pai, sendo obrigada a comê-la.
Trata-se de um momento em que a relação de objeto está sendo claramente
ruim, sente-se ameaçada, demonstra medo, conteúdo da ansiedade da
fantasia de agressão causada pela frustração excessiva. Melanie Klein
(1946) fala sobre a projeção, a introjeção e o processo de cisão
na organização do aparelho psíquico. A relação com os pais (seus objetos
externos) não está em conformidade com suas fantasias inconscientes dos
pais idealizados em seu mundo interno. Coraline tem que lidar com a
frustração, a falta de liberdade e a raiva provocadas pela
insensibilidade e desafeto desses pais, com a separação de partes da sua
vida que ficaram para trás com a mudança de casa, como os amigos, a
escola e, também, com a fase de desenvolvimento em que se encontra:
Coraline está entrando na puberdade, passando por conflitos típicos
desta fase. Essa transmutação gera em Coraline muita angústia revelada
nas cenas em que diz: “Não tenho mais idade para brincar com bonecas!”
e: “Não tenho mais cinco anos de idade!”. Em suas observações, Klein
(1932) afirma que “na puberdade, as manifestações de angústia e dos
afetos se exprimem com uma intensidade infinitamente maior do que no
período de latência e constituem uma espécie de recrudescimento das
descargas de angústia”.
A relação de Coraline com os pais, principalmente com a
figura frustradora, a mãe, é bem cindida. Desse modo, o ego fica
vulnerável, pois, também pode cindir-se, portanto, passa a buscar
gratificação, pode ser através da idealização originada dos desejos
pulsionais. Coraline sai à procura de um velho poço andonado usando uma
varinha de rabdomante, na verdade não indica o lugar do poço,
mas, demonstra sua necessidade inconsciente de obter satisfação da
curiosidade, de seus desejos. O poço pode simbolizar o misterioso
inconsciente que quanto mais fundo se consegue penetrar, mais se conhece
seu conteúdo: “... dizem que ele é tão fundo que se cair dentro dele e
olhar para cima, verá o céu cheio de estrelas em plena luz do
dia!” parafraseado na fala de Whyborn Lovat, cujo apelido Whybie conhece
Coraline e passa a fazer parte da história em muitos momentos, porém, é
um personagem criado exclusivamente para o filme para Coraline ter com
quem conversar. Para saber o nome de Coraline, ele pergunta: “Qual o seu
carma?” Coraline responde: “Meu nome não é nenhum carma! É Coraline!”.
Na verdade seu nome é um carma no sentido de uma consequência do
nascimento, porque naquele lugar ninguém pronuncia seu
nome corretamente, fato que a deixa sempre irritada. Porém, logo, não
mais corrige as pessoas. Reafirmando Martins (1991- In: Rabinovich e
cols.): “O inconsciente pesa sobre o nome de cada um, é suporte da
representação psíquica primária e fruto do desejo de um outro e funciona
como uma fantasia inconsciente fabricando sentido”.
Whybie presenteia Coraline com uma boneca semelhante a ela, cujos
olhos são de botões. A boneca pode representar a Coraline na sua
essência (self), sua parte infantil que vai ficando para trás como
consequência do amadurecimento. Whybie também apresenta à Coraline, o
gato como sendo selvagem e sem dono. Devido ao seu poder de transitar
tanto no mundo real quanto no ideal, à sua astúcia e sensatez, ele
pode representar parte do ego de Coraline.
O casarão não parece aconchegante, quase sem mobílias, sobretudo
o quarto de Coraline, sem colorido nas paredes, com uma rachadura no
teto, poucos brinquedos, totalmente impessoal, nem um pouco parecido com
um quarto de menina. Sentindo-se só e sem ter o que fazer, Coraline
começa a explorar o lugar e descobre uma porta quando aberta dá em uma
parede. Curiosa e com impulsos instintivos aguçados por encontrar vazão,
Coraline tem um sonho. Neste sonho, Coraline é conduzida por um rato
até a pequena porta. Ao abri-la, se depara com um túnel que a conduz à
outro mundo. Vislumbrada com o túnel, que se assemelha a entrada de
um útero, Coraline engatinha por ele até a outra porta. Segundo Klein
(1848), a porta e a chave são símbolos que representam a entrada e saída
do interior do objeto, assim como a chave, o pênis do pai. Penetrar
este túnel significa entrar no corpo da mãe, realizando o desejo de
controle, de força e de poder sobre ela. Segundo Klein (1948), “as
fantasias sádicas concernentes ao interior do corpo da mãe constituem
uma relação fundamental da criança com o mundo exterior e a realidade”. O
resultado da interação entre a projeção dos impulsos sádicos de
Coraline e a introjeção de seus objetos favorecerão sua adaptação e
aceitação à realidade. Neste outro mundo, Coraline tem todos os
seus desejos satisfeitos. Ela encontra seus pais idealizados, a “outra
mãe” (a Bela Dama) e o “outro pai”, ambos com botões no lugar dos olhos.
Neste outro mundo tudo é permitido e ideal: a “outra mãe” prepara
comidas gostosas, compra roupas coloridas do gosto de Coraline e brinca
com ela. O “outro pai” toca piano, canta para ela uma canção em que a
chama de “bonequinha” e não de “bruxinha”, como na canção do pai real.
Ele usa pantufas e faz um jardim com formato do rosto de Coraline. Este
jardim exuberante vai desabrochando ou "excitando” conforme Coraline
passa por entre as flores coloridas com formatos fálicos e que fazem
cócegas. Em duas cenas de cumplicidade entre Coraline e seu “outro pai”,
ficam marcados impulsos edípicos como uma forma de gratificação. Há uma
cena em que a “outra mãe” manda a filha e Whybie irem para o quarto. A
angústia provocada por múltiplos objetos do mundo real levando-a a
ficar com “olhos atentos”, no mundo ideal os olhos são de botões. Não
existe espiação e nem tão pouco expiação. Os “outros pais” permitem que
ela brinque na chuva com lama. Seu quarto é aconchegante, colorido e com
cortinas, os “outros pais” a levam para cama. Tudo parece perfeito. O
sonho gerou seu oposto devido a situação conflitual em desejar o modelo
dos pais idealizados em seu mundo interno. A “outra mãe” tenta
convencê-la a ficar com eles, mas, com a condição de deixá-la costurar
botões em seus olhos. É nesse momento que Coraline percebe que este
mundo ideal tem armadilhas, pois, se ceder à vontade da bela dama
perderá contato com a realidade. A “outra mãe”, que agora se revela uma
aranha monstruosa (bruxa), aprisiona os pais reais de Coraline, que por
sua vez sente culpa, começa a agir em busca de reparação. Coraline
mune-se de armas (recursos) e com a ajuda do gato salva seus pais,
tranca a porta e joga a chave no poço para que a bela dama jamais a
encontre. Klein (1930) afirma em seus estudos que certa quantidade de
ansiedade é necessária para a formação de símbolos e fantasias para que o
Ego aprenda a lidar com a ansiedade para uma elaboração adequada.
Quando reage contra a “outra mãe”, Coraline consegue equacionar os dois
mundos, tanto o real quanto o ideal integrando-os. A culpa diminui,
enquanto o ego se fortalece e consegue unir as partes cindidas, faz com
que a clivagem entre os objetos persecutórios e os idealizados diminua, o
que conduz a concluir que Coraline consegue manter preservada a sua
integridade mental.
AUTORA: VISETTE GILIARDI
REFERÊNCIAS:
- KLEIN, M. “Psicanálise da Criança” (1948), Tradução: Pola Civelli – 3ª edição – São Paulo:
Mestre Jou. 1981. Cap.5 pág. 119.
- KLEIN, M. “A Importância da Formação de Símbolos no Desenvolvimento do Ego”. In: Amor
Culpa e reparação e Outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago. 1930.
- KLEIN, M. “Uma Contribuição à Psicogênese dos Estados Maníacos Depressivos”. In: Amor,
Culpa e Reparação e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1935.
Mestre Jou. 1981. Cap.5 pág. 119.
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Culpa e reparação e Outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago. 1930.
- KLEIN, M. “Uma Contribuição à Psicogênese dos Estados Maníacos Depressivos”. In: Amor,
Culpa e Reparação e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1935.
- KLEIN, M. “O Complexo de Édipo à Luz das Ansiedades Arcaicas”. In: Amor, Culpa e Reparação e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1948
- RABINOVICH, E. P., TAVAGLINE, D., COSER, A. C. P. H., ESTEVES, E. N. “Atribuição de
nomes Próprios e seu Papel no Desenvolvimento Segundo Relato dos Nomeados”. Texto extraído da
Revista .Bras.Cresc.Des.Hum. São Paulo, III (2): 119-137, 1993.
- FREUD, S. “A Interpretação dos Sonhos”. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud;
- RABINOVICH, E. P., TAVAGLINE, D., COSER, A. C. P. H., ESTEVES, E. N. “Atribuição de
nomes Próprios e seu Papel no Desenvolvimento Segundo Relato dos Nomeados”. Texto extraído da
Revista .Bras.Cresc.Des.Hum. São Paulo, III (2): 119-137, 1993.
- FREUD, S. “A Interpretação dos Sonhos”. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud;
DISPONÍVEL EM: Psicoleque
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